sábado, 8 de agosto de 2015

Poesia - História d´um cão


HISTÓRIA D’UM CÃO
                                                             por Luiz Guimarães

Eu tive um cão. Chamava-se Veludo;
Magro,asqueroso,revoltante,imundo;
Para dizer numa palavra tudo
Foi o mais feio cão que houve no mundo.

Recebi-o das mãos d’um camarada
Na hora da partida. O cão gemendo
Não me queria acompanhar por nada:
Enfim - mau grado seu- o vim trazendo.

O meu amigo cabisbaixo, mudo,
Olhava-o... o sol nas ondas se abismava...
“Adeus” -me disse-, e ao afagar Veludo
Nos olhos seus o pranto borbulhava.

“Trata-o bem. Verás como rasteiro
Te indicará os mais sutis perigos;
Adeus! E que este amigo verdadeiro
Te console no mundo ermo de amigos.”

Veludo a custo habituou-se à vida
Que o destino de novo lhe escolhera;
Sua rugosa pálpebra sentida
Chorava o antigo dono que perdera.

Nas longas noites de luar brilhante,
Febril,convulso,trêmulo, agitando
A sua cauda - caminhava errante
À luz da lua - tristemente uivando.

Toussenel,Figuier e a lista imensa
Dos modernos zoológicos doutores
Dizem que o cão é um animal que pensa:
Talvez tenham razão estes senhores.

Lembro-me ainda. Trouxe-me o correio,
Cinco meses depois, do meu amigo
Um envelope fartamente cheio :
Era uma carta. Carta! Era um artigo

Contendo a narração miúda e exata
Da travessia.  Dava-me importantes
Notícias do Brasil e de la Plata
Falava em rios, árvores gigantes:

Gabava o “steamer” que o levou;dizia

Que ia tentar inúmeras empresas :
Contava-me também que a bordo havia
Mulheres joviais - todas francesas.

Assombrava-se muito da ligeira

Moralidade que encontrou a bordo :
Citava o caso d’uma passageira ...
Mil cousas mais de que me não recordo.

Finalmente, por baixo disso tudo
Em nota bene do melhor cursivo
Recomendava o pobre do Veludo
Pedindo a Deus que o conservasse vivo.

Enquanto eu lia,o cão tranqüilo e atento
Me contemplava, e - creia que é verdade,
Vi, comovido, vi nesse momento
Seus olhos gotejarem de saudade.

Depois lambeu-me as mãos humildemente,
Extendeu-se a meus pés silencioso
Movendo a causa, - e adormeceu contente
Farto d’um puro e satisfeito goso.

Passou-se o tempo. Finalmente um dia
Vi-me livre daquele companheiro;
Para nada Veludo me servia,
Dei-o à mulher d’um velho carvoeiro.

E respirei! Graças a Deus! já posso”
Dizia eu “viver neste bom mundo
Sem ter que dar diàriamente um osso
A um bicho vil, a um feio cão imundo.”

Gosto dos animais, porém prefiro
A essa raça baixa e aduladora
Um alazão inglez, de sela ou tiro,
Ou uma gata branca cismadora.

Mal respirei, porém! Quando dormia
E a negra noite amortalhava tudo,
Senti que à minha porta alguém batia:
Fui ver quer era. Abri. Era Veludo.

Saltou-me às mãos,lambeu-me os pés ganindo,
Farejou toda a casa satisfeito;
E - de cansado - foi rolar dormindo
Como uma pedra, junto do meu leito.

Praguejei furioso.  Era execrável
Suportar esse hóspede inoportuno
Que me seguia como o miserável
Ladrão, ou como um pérfido gatuno

E resolvi-me enfim. Certo, é custoso

Dizê-lo em alta voz e confessá-lo:
Para livrar-me desse cão leproso
Havia um meio só: era matá-lo.

Zunia a asa fúnebre dos ventos;
Ao longe o mar na solidão gemendo
Arrebentava em uivos e lamentos ...
De instante a instante ia o tufão crescendo.

Chamei Veludo; ele seguiu-me. Entanto
A fremente borrasca me arrancava
Dos frios ombros o revolto manto
E a chuva meus cabelos fustigava.

Despertei um barqueiro. Contra o vento,
Contra as ondas coléricas vogamos;
Dava-me força o torvo pensamento :
Peguei num remo - e com furor remamos.

Veludo à proa olhava-me choroso
Como o cordeiro no final momento.
Embora! Era fatal! Era forçoso
Livrar-me enfim desse animal nojento.

No largo mar ergui-o nos meus braços
E arremessei-o às ondas de repente ...
Ele moveu gemendo os membros lassos
Lutando contra a morte.  Era pungente.

Voltei à terra, - entrei em casa. O vento
Zunia sempre na amplidão profundo.
E pareceu-me ouvir o atroz lamento
De Veludo nas ondas moribundo.

Mas ao despir dos ombros meus o manto
Notei - oh grande dor! - haver perdido
Uma relíquia que eu prezava tanto !
Era um cordão de prata:- eu tinha-o unido

Contra o meu coração constantemente
E o conservava no maior recato,
Pois minha mãe me dera essa corrente
E, suspenso à corrente, o seu retrato.

Certo caíra além no mar profundo,
No eterno abismo que devora tudo;
E foi o cão, foi esse cão imundo
A causa do meu mal ! Ah! se Veludo

Duas vidas tivera, - duas vidas
Eu arrancára àquela besta morta
E àquelas vís entranhas corrompidas.
Nisto senti uivar à minha porta.

Corri, - abri ... Era Veludo! Arfava:
Extendeu-se a meus pés, - e docemente
Deixou cair da boca que espumava
A medalha suspensa da corrente.

Fôra crível, oh Deus ? - Ajoelhado
Junto do cão - estupefato, absorto,
Palpei-lhe o corpo: estava enregelado;
Sacudi-o, chamei-o ! Estava morto.

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O autor desse lírico e não menos monumental (em todos os sentidos...) poema, aqui na ortografia original, Luis Caetano Pereira Guimarães Júnior, nasceu no Rio de Janeiro, em 1845 e desencarnou em Lisboa, em 1898.  Diplomata de carreira, serviu em diversos países. Foi membro fundador da Academia Brasileira de Letras — Cadeira 31.
Aqui, em alguns instantes, seu cantar, dolorido parece vir das entranhas mais recônditas da alma de alguém desterrado, ficando difícil definir se o espelho da solidão e da saudade refletia o viajante ou seu cão...
Os sentimentos do poeta indicam que talvez tenham sido inspirados nele próprio — sua vida nômade, como acontece com os diplomatas - deixando para trás lembranças, amores, saudades.
Em minha infância, lendo a “História d’um Cão”, num dos tomos de “O Tesouro da Juventude” (IX Volume), fiquei dias e dias, com lágrimas inesperadas, impressionado com o discurso nele embutido, em defesa dos animais.
Dificilmente a fidelidade, humildade e perdão, virtudes aqui atribuídas aos cães e tão deslembradas entre muitos homens encontrarão paralelo narrativo, como este. Sensibilizado pelo poema, seguramente, isso muito influenciou minha postura para com os animais, desde então.
E, a cada leitura, tanto a partir da primeira, quanto agora, já decorridos quase setenta anos, gotas de pranto orvalham-me o rosto.


                 Ribeirão Preto/SP – Primavera de 2012
                Eurípedes Kühl


2 comentários:

  1. Também a mim brotaram lágrimas. Que esse poema possa tocar muitos corações.

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  2. Boa tarde como é linda essa poesia um animal é muito mais amigo que um ser humano pois o cão nos acompanha em todas as situações na doença na dor na alegria é muito gratificante quem tem um cão amigo eu tive ium que me acompanhou em todos momentos de minha vida nao o esquecerei enquanto eu viver

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