Intenção é o desejo deliberado de alguém realizar alguma ação.
Allan Kardec preocupou-se muito em esclarecer, do ponto de vista espiritual, como Deus ajuíza e quantifica o mérito ou demérito de cada ação humana. Simplificando: quais os graus de inocência ou culpa, de atenuantes ou agravantes (bônus ou ônus) de cada ato, de cada homem.
Considerando a sublime plataforma na qual Kardec se posicionou para levar adiante a Codificação da Doutrina dos Espíritos, óbvio que também esta sua pesquisa foi direcionada inteiramente para os conseqüentes morais de tudo aquilo que o ser realiza.
Resulta notável a intuição de Kardec ao enfocar este aspecto em particular, no longo roteiro evolutivo de cada Espírito e cumpre atentar que à sua época a Ciência de então, de par com a Religião, eram predominantes, ambas, no pensamento humano e abominavam a reencarnação. Por conseguinte havia (como ainda hoje há) desconhecimento generalizado da Lei Divina de Justiça, naquilo que consubstancia ação e reação, plantação e colheita, consoante magistralmente Jesus enunciou: “A cada um a retribuição será de acordo com o seu comportamento”[1].
Nesse contexto, uma vez mais desponta a abençoada argúcia e o filantropismo de Kardec, preocupando-se em pavimentar com esclarecimentos lógicos a sinuosa estrada da caminhada terrena, onde tantos paradoxos parecem atropelar os que nela trilham — maioria da Humanidade — sem o entendimento da Justiça Divina.
Pois, de fato, vem de longe a inexplicabilidade de uma Justiça Superior que permite a réprobos morais prosperar, ao passo que tragédias alcançam pessoas de boa conduta e até mesmo crianças de tenra idade...
Tais fatos, de aparente injustiça, se submetidos ao sol do meio-dia (a lógica) e focados pelas lentes da reencarnação certamente aquecerão com entendimento as mentes desabrigadas e ao frio da desconfiança na Sabedoria e no Amor do Criador.
Voltando à intenção, não há negar que raramente ela é impulsionada por apenas um vetor, a chamada “primeira intenção”, no caso, intenção única.
Intenção única é aquela na qual o agente visa apenas um objetivo, uma resultante. Talvez seja permitido supor que Jesus, ao se deslocar dos alcândores celestiais para conviver conosco, teve a intenção exclusiva de nos ajudar mais diretamente, agindo por amor. Só por amor! Nesse diapasão de fraternidade, Allan Kardec, predispondo-se a codificar o Espiritismo, objetivou colocar ao alcance da Humanidade as sublimidades recebidas do Plano Espiritual, via processualística inédita, que tão bem soube apropriar da mediunidade.
Exceção daquilo que fazem os homens de bem, minoria no nosso planeta, quase tudo o que aqui é feito tem por fulcro a resultante da segunda, da terceira ou até de mais ações, as quais se encadeiam, como elos da corrente.
O homem assim procede, para o bem ou para o mal, consciente ou inconscientemente. É dessa forma que, sem generalizar, vê-se:
- aquele que se especializa tem por meta conseguir bom emprego, bom salário... mas também vida confortável;
- o médico que se forma pretende curar doenças... mas também uma posição profissional relevante;
- o político se esforça para ser eleito para ajudar a comunidade... mas também ser aclamado;
- o atleta que treina com denodo mira superar marcas... mas também o êxtase do pódio, da vitória, da fama;
- o espírita estuda as lições do Espiritismo para compreender cada vez mais a razão da existência... mas também para promover a autorreforma.
Assim é que a primeira intenção não é a verdadeira, ou melhor, não é a única, a principal, mas um alicerce para a construção de um projeto, que pode se dirigir a outros focos. É por isso que na vida há surpresas: boas ou más...
O homem desconfia do próprio homem e amiúde se ouve: “fulano agiu assim com segunda intenção”. Ou então, perguntas expressas ou ocultas: “quais serão as intenções desse acontecimento?”, “o que será que ele/ela quis dizer com isso?”, “com que objetivo fulano fez tal coisa?”.
Num exemplo singular, referente aos danos da competição, que é uma das maiores causas de desavenças e infelicidades, encontraremos num inocente jogo de xadrez os competidores agindo inexoravelmente com intenções ocultas, para não dizermos subreptícias... O jornal “O Atibaiense”, da cidade de Atibaia/SP, na edição nº 7.569, de 14.Jan.2006, publica reportagem citando que uma pessoa especial, daquela cidade, no ano de 1997 assombrou o mundo enxadrístico ao jogar simultaneamente (vários adversários ao mesmo tempo) e em uma das partidas anunciar que daria xeque-mate em 12 lances, fossem quais fossem as jogadas do respectivo competidor! E isso aconteceu![2]
Nós outros, ainda limitados mourejantes da estrada evolutiva, dificilmente agimos só com intenção única. E foi por causa disso que Kardec houve por bem dirigir algumas perguntas aos Esclarecedores Siderais, cujas respostas ele, em boa hora, deixou registradas no “O Livro dos Espíritos”. Ei-las, por números:
658. Agrada a Deus a prece?
“A prece é sempre agradável a Deus, quando ditada pelo coração, pois, para ele, a intenção é tudo. (...)”. (Grifamos)
670. Dar-se-á que alguma vez possam ter sido agradáveis a Deus os sacrifícios humanos praticados com piedosa intenção?
“Não, nunca. Deus, porém, julga pela intenção. (...)”.
672. A oferenda feita a Deus, de frutos da terra, tinha a seus olhos mais mérito do que o sacrifício dos animais?
“Já vos respondi, declarando que Deus julga segundo a intenção”. (...)”.
747. É sempre do mesmo grau a culpabilidade em todos os casos de assassínio?
“Já o temos dito: Deus é justo, julga mais pela intenção do que pelo fato”.
749. Tem o homem culpa dos assassínios que pratica durante a guerra?
“Não, quando constrangido pela força; mas é culpado das crueldades que cometa, sendo-lhe também levado em conta o sentimento de humanidade com que proceda”.
Mais à frente em “O Livro dos Espíritos”, na 4ª Parte, Kardec aborda de modo enfático as variáveis do equivocado ato do suicídio. Algumas:
948. É tão reprovável, como o que tem por causa o desespero, o suicídio daquele que procura escapar à vergonha de uma ação má?
“O suicídio não apaga a falta. (...) Deus, que julga, pode, conforme a causa, abrandar os rigores de sua justiça”.
949. Será desculpável o suicídio, quando tenha por fim obstar a que a vergonha caia sobre os filhos, ou sobre a família?
“O que assim procede não faz bem. Mas, como pensa que o faz, Deus lhe leva isso em conta, pois que é uma expiação que ele se impõe a si mesmo. A intenção lhe atenua a falta. (...)”.
951. Não é, às vezes, meritório o sacrifício da vida, quando aquele que o faz visa salvar a de outrem, ou ser útil aos seus semelhantes?
“Isso é sublime, conforme a intenção, e, em tal caso, o sacrifício da vida não constitui suicídio. (...)”.
NOTA: A propósito de alguém se matar pensando em ser útil a outrem, vamos citar dois casos de suicídio, autodeliberados, de certa forma similares e de difícil enquadramento quanto à culpabilidade:
1º - No caso “O pai e o conscrito”[3], em 1859, um pai de família, ao saber que seu filho fora convocado para ir combater na guerra da Itália, não podendo livrá-lo desse compromisso militar, suicidou-se, para que esse filho não fosse, já que pela lei passaria a ser o “arrimo de família” (da mãe, então viúva). Evocado, o Espírito reportou que sofria muito, justamente, mas que teve abrandamento da pena, pois compreendia que sua ação não deixou de ser má. O Espírito São Luís acrescentou que nesse caso o motivo propiciou atenuante, e que “Deus, que é justo e vê o fundo dos corações, não o pune (ao suicida) senão de acordo com suas obras”.
2º - A inolvidável médium Yvonne A.Pereira (1906-1984) narra que na cidade de Pirapora/MG[4], na época da II Guerra Mundial (1939-1945), uma pobre senhora “sem orientação espiritual eficiente, tinha um filho que era a razão do seu viver, as primícias da sua vida”. Sendo esse filho convocado para partir para a Itália, a mãe, conquanto muito religiosa, católica, fez veemente promessa a Deus de dar a própria vida em troca da vida e da saúde desse filho, caso ele retornasse da guerra são e salvo. Foi o que aconteceu. Sabendo da promessa da senhora, muitos, inclusive o vigário local, tentaram dissuadi-la desse equivocado propósito. Debalde. Um ano depois ela se atirou às violentas águas da cheia do Rio São Francisco, vindo a falecer. Comenta Yvonne: “que o leitor amigo nos ajude a classificar esse caso de suicídio, porque, em verdade, não sabemos como apreciá-lo. Auto-obsessão? Obsessão real? Enfermidade nervosa? Revolta contra Deus e a Vida? Ignorância das leis de Deus? Amor materno elevado ao fanatismo? Desequilíbrio mental pelo horror à guerra? Nas nossas observações não encontramos caso igual. Todavia, as intenções pesam muitíssimo para as leis divinas, embora não cheguem a tudo justificar”.
954. Será condenável uma imprudência que compromete a vida sem necessidade?
“Não há culpabilidade, em não havendo intenção, ou consciência perfeita da prática do mal”.
NOTA: O caso dos “camicases” (do japonês: kamikases), pilotos que na II Guerra Mundial, tanto quanto atualmente os “homens-bomba” (conflitos Palestina x Israel, Iraque x EUA), que ao se sacrificarem o fizeram ou fazem por “patriotismo”, ou por ilusão de vida paradisíaca após a morte, expõe desconhecimento da vida contínua. Não objeta imaginar que Deus levará em conta essa ignorância e a intenção, não obstante a necessidade de dolorosa reconstrução com a qual terão que arcar, face o mal que causaram a outrem. Contudo, mais responsabilizados e penalizados pela própria consciência serão os líderes que induziram seus subordinados a assim proceder, conquanto também eles assim agiram por ignorância das vidas sucessivas.
Kardec abordou as nuanças da intenção em outras duas oportunidades:
a. Referindo-se com severidade ao delicadíssimo tema do charlatanismo e do embuste[5], estabelece enérgica diferença entre os médiuns que cometem abuso e aproveitamento (especuladores), daqueles que, impedidos de trabalhar, dedicam-se (com retribuição) de forma eminentemente séria e útil. Reporta que “conforme o motivo e o fim, podem, pois, os Espíritos condenar, absolver e, até, auxiliar. Eles julgam mais a intenção do que o fato material”;
b. Na mesma obra, referindo-se às “Reuniões espíritas”, promulga[6] enfaticamente que cada uma delas “é um ser coletivo”, pelo que, vinte pessoas, unindo-se com a mesma intenção, vibrando em uníssono, terão mais força do que uma só. (Grifamos).
[1] Mateus – 16:27
[2] Consta que essa incrível façanha está registrada no Guiness Book (o livro dos recordes),de 1998, às p. 110 e 111.
[3] “O Céu e
o Inferno”, de Allan Kardec, 2ª Parte, Cap V.
[4]
“Cânticos do Coração”, de Yvonne A.Pereira, Vol II, Cap III, p. 33 a 40,
Edições CELD, RJ/RJ, 1995
[5] “O Livro
dos Médiuns”, de Allan Kardec, 2ª Parte, Cap XXVIII, item 311.
[6] “O Livro
dos Médiuns”, de Allan Kardec, 2ª Parte, Cap XXIX, item 331.
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