Mostrando postagens com marcador poesia. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador poesia. Mostrar todas as postagens

terça-feira, 10 de dezembro de 2019

Poesia - Uma nota de saudade


    Uma nota de saudade
               Rafael Dalle Vedove Geber

O teu andar, quando tu passas leda,
Face risonha com teu livro à mão,
É como a flor deitando sobre a seda
Tecendo histórias do teu coração...
Este perfume que de ti evola
Que me amortece como a taça e o vinho,
São como as notas de gentil viola
Fazendo coro à voz de um passarinho...
Junto de ti o vendaval suspira!
O rio exulta! A natureza dança!
O sol se erguendo na acender da pira,
Abraça as nuvens feito uma criança;
Não te recordas desse tempo antigo,
Onde a alegria a fronte nos beijava?
O teu amor - como primeiro abrigo -,
De qualquer dor meu seio confortava.
Este passado que se faz presente
Neste presente que não vejo mais,
É triste herança que recebo; e ausente,
Tu nem sequer podes ouvir meus ais.


sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

A Máquina de Escrever


A Máquina de Escrever
                     Giuseppe Ghiaroni *


Mãe, se eu morrer de um repentino mal,
vende meus bens a bem dos meus credores:
a fantasia de festivas cores
que usei no derradeiro Carnaval.

Vende esse rádio que ganhei de prêmio
por um concurso num jornal do povo,
e aquele terno novo, ou quase novo,
com poucas manchas de café boêmio.

Vende também meus óculos antigos
que me davam uns ares inocentes.
Já não precisarei de duas lentes
para enxergar os corações amigos.

Vende , além das gravatas, do chapéu,
meus sapatos rangentes. Sem ruído
é mais provável que eu alcance o Céu
e logre penetrar despercebido.

Vende meu dente de ouro. O Paraíso
requer apenas a expressão do olhar.
Já não precisarei do meu sorriso
para um outro sorriso me enganar.

Vende meus olhos a um brechó qualquer
que os guarde numa loja poeirenta,
reluzindo na sombra pardacenta,
refletindo um semblante de mulher.

Vende tudo, ao findar a minha sorte,
libertando minha alma pensativa
para ninguém chorar a minha morte
sem realmente desejar que eu viva.

Pode vender meu próprio leito e roupa
para pagar àqueles a quem devo.
Sim, vende tudo, minha mãe, mas poupa
esta caduca máquina em que escrevo.

Mas poupa a minha amiga de horas mortas,
de teclas bambas,tique-taque incerto.
De ano em ano, manda-a ao conserto
e unta de azeite as suas peças tortas.

Vende todas as grandes pequenezas
que eram meu humílimo tesouro,
mas não! ainda que ofereçam ouro,
não venda o meu filtro de tristezas!

Quanta vez esta máquina afugenta
meus fantasmas da dúvida e do mal,
ela que é minha rude ferramenta,
o meu doce instrumento musical.

Bate rangendo, numa espécie de asma,
mas cada vez que bate é um grão de trigo.
Quando eu morrer, quem a levar consigo
há de levar consigo o meu fantasma.

Pois será para ela uma tortura
sentir nas bambas teclas solitárias
um bando de dez unhas usurárias
a datilografar uma fatura.

Deixa-a morrer também quando eu morrer;
deixa-a calar numa quietude extrema,
à espera do meu último poema
que as palavras não dão para fazer.

Conserva-a, minha mãe, no velho lar,
conservando os meus íntimos instantes,
e, nas noites de lua, não te espantes
quando as teclas baterem devagar.
                       -   -   -
Giuseppe Artidoro Ghiaroni
– Nasceu em Paraíba Do Sul, (RJ), no dia 22 de fevereiro de 1919.
Foi Jornalista, poeta, redator, tradutor e radialista.
Faleceu em  2008, aos 89 anos.


sexta-feira, 27 de maio de 2016

Poesia - Dor suprema


DOR SUPREMA
(Antônio dos Reis Carvalho)*

Dizem que amar sem ser também amado
É das desgraças a maior desgraça.
E é a do desengano amarga taça
Que tem mais corações envenenado.

O amante sofre, pensa alucinado
Pela ânsia de um desejo que não passa...
Para acalmá-lo é vão tudo que faça,
Nada consola o amor desenganado.

No entanto dor maior existe ainda,
Dor sem remédio, dor que nunca finda,
E que embalde no peito sufocamos.

É a mágoa de amar e amado embora,
Ter de calar o amor que nos devora
Jamais poder dizer que nos amamos.

*Antonio dos Reis Carvalho (1874/1946)
 Escritor, jornalista e poeta brasileiro.

-  -  -

Este comovente soneto encontra-se inserido no contexto de um belíssimo romance do livro “Sempre há uma esperança”, autor espiritual Roboels, psicografia de Eurípedes Kühl, 1995,



sexta-feira, 8 de abril de 2016

Poesias - A voz do mar




A VOZ DO MAR
(Sugestões do crepúsculo - I)

Ao pôr do sol, pela tristeza
Da meia luz crepuscular,
Tem a toada de uma reza
A voz do mar.


Aumenta, alastra e desce pelas
Rampas dos morros, pouco a pouco,
O êrmo de sombra, vago e ôco,
Do céu sem sol e sem estrelas.


Tudo amortece; a tudo invade
Uma fadiga, um desconfôrto...
Como a infeliz serenidade
 Do embaciado olhar de um morto.


Domada então por um instante
Da singular melancolia
De em tôrno — apenas balbucia
A voz piedosa do gigante.


Tôda se abranda a vaga hirsuta,
Tôda se humilha, a murmurar...
Que pede ao céu que não a escuta
A voz do mar?

     (Do livro "Poemas e Canções", Vicente de Carvalho, cap.Sugestões do crepúsculo, 17ªEd.1965, Edição Saraiva, SP/SP)  -  Transcrição na ortografia do original

sábado, 8 de agosto de 2015

Poesia - História d´um cão


HISTÓRIA D’UM CÃO
                                                             por Luiz Guimarães

Eu tive um cão. Chamava-se Veludo;
Magro,asqueroso,revoltante,imundo;
Para dizer numa palavra tudo
Foi o mais feio cão que houve no mundo.

Recebi-o das mãos d’um camarada
Na hora da partida. O cão gemendo
Não me queria acompanhar por nada:
Enfim - mau grado seu- o vim trazendo.

O meu amigo cabisbaixo, mudo,
Olhava-o... o sol nas ondas se abismava...
“Adeus” -me disse-, e ao afagar Veludo
Nos olhos seus o pranto borbulhava.

“Trata-o bem. Verás como rasteiro
Te indicará os mais sutis perigos;
Adeus! E que este amigo verdadeiro
Te console no mundo ermo de amigos.”

Veludo a custo habituou-se à vida
Que o destino de novo lhe escolhera;
Sua rugosa pálpebra sentida
Chorava o antigo dono que perdera.

Nas longas noites de luar brilhante,
Febril,convulso,trêmulo, agitando
A sua cauda - caminhava errante
À luz da lua - tristemente uivando.

Toussenel,Figuier e a lista imensa
Dos modernos zoológicos doutores
Dizem que o cão é um animal que pensa:
Talvez tenham razão estes senhores.

Lembro-me ainda. Trouxe-me o correio,
Cinco meses depois, do meu amigo
Um envelope fartamente cheio :
Era uma carta. Carta! Era um artigo

Contendo a narração miúda e exata
Da travessia.  Dava-me importantes
Notícias do Brasil e de la Plata
Falava em rios, árvores gigantes:

Gabava o “steamer” que o levou;dizia

Que ia tentar inúmeras empresas :
Contava-me também que a bordo havia
Mulheres joviais - todas francesas.

Assombrava-se muito da ligeira

Moralidade que encontrou a bordo :
Citava o caso d’uma passageira ...
Mil cousas mais de que me não recordo.

Finalmente, por baixo disso tudo
Em nota bene do melhor cursivo
Recomendava o pobre do Veludo
Pedindo a Deus que o conservasse vivo.

Enquanto eu lia,o cão tranqüilo e atento
Me contemplava, e - creia que é verdade,
Vi, comovido, vi nesse momento
Seus olhos gotejarem de saudade.

Depois lambeu-me as mãos humildemente,
Extendeu-se a meus pés silencioso
Movendo a causa, - e adormeceu contente
Farto d’um puro e satisfeito goso.

Passou-se o tempo. Finalmente um dia
Vi-me livre daquele companheiro;
Para nada Veludo me servia,
Dei-o à mulher d’um velho carvoeiro.

E respirei! Graças a Deus! já posso”
Dizia eu “viver neste bom mundo
Sem ter que dar diàriamente um osso
A um bicho vil, a um feio cão imundo.”

Gosto dos animais, porém prefiro
A essa raça baixa e aduladora
Um alazão inglez, de sela ou tiro,
Ou uma gata branca cismadora.

Mal respirei, porém! Quando dormia
E a negra noite amortalhava tudo,
Senti que à minha porta alguém batia:
Fui ver quer era. Abri. Era Veludo.

Saltou-me às mãos,lambeu-me os pés ganindo,
Farejou toda a casa satisfeito;
E - de cansado - foi rolar dormindo
Como uma pedra, junto do meu leito.

Praguejei furioso.  Era execrável
Suportar esse hóspede inoportuno
Que me seguia como o miserável
Ladrão, ou como um pérfido gatuno

E resolvi-me enfim. Certo, é custoso

Dizê-lo em alta voz e confessá-lo:
Para livrar-me desse cão leproso
Havia um meio só: era matá-lo.

Zunia a asa fúnebre dos ventos;
Ao longe o mar na solidão gemendo
Arrebentava em uivos e lamentos ...
De instante a instante ia o tufão crescendo.

Chamei Veludo; ele seguiu-me. Entanto
A fremente borrasca me arrancava
Dos frios ombros o revolto manto
E a chuva meus cabelos fustigava.

Despertei um barqueiro. Contra o vento,
Contra as ondas coléricas vogamos;
Dava-me força o torvo pensamento :
Peguei num remo - e com furor remamos.

Veludo à proa olhava-me choroso
Como o cordeiro no final momento.
Embora! Era fatal! Era forçoso
Livrar-me enfim desse animal nojento.

No largo mar ergui-o nos meus braços
E arremessei-o às ondas de repente ...
Ele moveu gemendo os membros lassos
Lutando contra a morte.  Era pungente.

Voltei à terra, - entrei em casa. O vento
Zunia sempre na amplidão profundo.
E pareceu-me ouvir o atroz lamento
De Veludo nas ondas moribundo.

Mas ao despir dos ombros meus o manto
Notei - oh grande dor! - haver perdido
Uma relíquia que eu prezava tanto !
Era um cordão de prata:- eu tinha-o unido

Contra o meu coração constantemente
E o conservava no maior recato,
Pois minha mãe me dera essa corrente
E, suspenso à corrente, o seu retrato.

Certo caíra além no mar profundo,
No eterno abismo que devora tudo;
E foi o cão, foi esse cão imundo
A causa do meu mal ! Ah! se Veludo

Duas vidas tivera, - duas vidas
Eu arrancára àquela besta morta
E àquelas vís entranhas corrompidas.
Nisto senti uivar à minha porta.

Corri, - abri ... Era Veludo! Arfava:
Extendeu-se a meus pés, - e docemente
Deixou cair da boca que espumava
A medalha suspensa da corrente.

Fôra crível, oh Deus ? - Ajoelhado
Junto do cão - estupefato, absorto,
Palpei-lhe o corpo: estava enregelado;
Sacudi-o, chamei-o ! Estava morto.

               ---------------

O autor desse lírico e não menos monumental (em todos os sentidos...) poema, aqui na ortografia original, Luis Caetano Pereira Guimarães Júnior, nasceu no Rio de Janeiro, em 1845 e desencarnou em Lisboa, em 1898.  Diplomata de carreira, serviu em diversos países. Foi membro fundador da Academia Brasileira de Letras — Cadeira 31.
Aqui, em alguns instantes, seu cantar, dolorido parece vir das entranhas mais recônditas da alma de alguém desterrado, ficando difícil definir se o espelho da solidão e da saudade refletia o viajante ou seu cão...
Os sentimentos do poeta indicam que talvez tenham sido inspirados nele próprio — sua vida nômade, como acontece com os diplomatas - deixando para trás lembranças, amores, saudades.
Em minha infância, lendo a “História d’um Cão”, num dos tomos de “O Tesouro da Juventude” (IX Volume), fiquei dias e dias, com lágrimas inesperadas, impressionado com o discurso nele embutido, em defesa dos animais.
Dificilmente a fidelidade, humildade e perdão, virtudes aqui atribuídas aos cães e tão deslembradas entre muitos homens encontrarão paralelo narrativo, como este. Sensibilizado pelo poema, seguramente, isso muito influenciou minha postura para com os animais, desde então.
E, a cada leitura, tanto a partir da primeira, quanto agora, já decorridos quase setenta anos, gotas de pranto orvalham-me o rosto.


                 Ribeirão Preto/SP – Primavera de 2012
                Eurípedes Kühl